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TREVOR

Memórias do Padre Zé

Em 1982, isto é, dez anos depois da minha primeira visita a Austrália, voltei àquele imenso país, onde encontrei situações familiares bem diferentes do que daquelas da primeira vez. Minha irmã Rita já se tinha mudado com seu marido Paul e três crianças em sua nova casa em Saint Albans. Minha irmã Maria, já casada com Joe, tinha se estabelecido também em Ardeer. Meu irmão Felix tinha voltado a morar em Kensington. Todos na região de Melbourne. Apenas meu irmão Adeodato, o qual tinha morado dez anos na Austrália, permaneceu em Munxar (Malta) com os pais. Sobrinhos e primos australianos já estavam traçando seus caminhos satisfatoriamente e com todos os problemas próprios de qualquer família que se preza. Meu amigo Frits, aquele dos “Phantoms”, cuja irmã era casada com um primo meu, já tinha adquirido uma bela chácara, que ele transformou em “Mombulk Animal Kingdom” (Reino dos Animais de Monbulk) com uma coleção de animais exóticos australianos: cangurus, wombats, dingo, coalas, ornitorrinco, e até leões. Muita gente ia passar uns momentos de lazer com suas famílias neste parque. Era ambiente muito bonito e agradável! Também passei alguns dias com ele, quando fomos visitar um antigo amigo dele não muito longe do parque. Ao chegarmos em casa, o amigo não se encontrava, tinha ido no bar para passar alguns momentos de folga com seus colegas e onde Frits foi encontra-lo. E eu fiquei conversando com a esposa até ele voltar. Sabendo que eu era padre, a esposa, se mostrando muito chateada e aborrecida, me dizia que o marido havia se tornado alcoólatra e estava acabando com a paz na família. O filho Trevor, já com 14 anos, percebia a situação e se sentia muito desgostoso. E me dizia: “que pena que o Sr. esteja morando tão longe! Poderia ter amizade com meu filho, com o se fosse seu parente, para que pudesse se abrir com alguém!” E, de repente, a porta se abriu e apareceu Trevor, já adolescente, alto, esbelto, muito simpático, em seu uniforme escolar. Sentou na sala comigo e conversamos um tempão. Desabafou: “como gostaria de ir junto ao Brasil! Deixe-me seu contato… quem sabe um dia!”. Ficamos amigos!

O tempo passou… e num belo dia do mês de abril de 1986, recebi esta carta de Trevor: “Joe, espero que se lembre de mim porque já faz muito tempo que não escrevo. As coisas aqui estão muito diferentes agora, papai e mamãe se separaram; Chris e eu moramos com a mãe. Está muito duro! Agora estou com 17 anos e o que mais quero fazer é viajar. Sou aprendiz da gastronomia (2º ano). Então, o que acontece no Brasil? Eu penso que o Brasil é um lugar maravilhoso para se viver. Espero que você tenha tempo para escrever para mim porque adoraria saber tudo sobre o Brasil. Quando eu tiver algum dinheiro, irei para visita-lo. Será que tem trabalho para chef no Brasil? Amaria trabalhar num país tão grande. Não faz muito tempo, viajei pela Austrália de ônibus por quatro semanas. Foi excelente! Espero um dia poder encontra-lo no Brasil. P.S.: não dê meu endereço ao pai.”

Depois de uma semana, respondi-lhe dizendo que seria grande prazer para mim tê-lo comigo como se fosse meu sobrinho. As cartas, naquela época, levavam tempo para chegar ao destino; portanto, ele deve ter recebido minha resposta pela metade de maio. No início de junho, recebi carta da mãe dele, em que ela dizia: “Sinto muito por não ter escrito antes, pois eu não conseguia colocar no papel a dor do meu coração. No dia 3 de maio, meu filho Trevor faleceu tranquilamente enquanto dormia. Trevor sempre falava a seu respeito e suas esperanças de ir ao Brasil consigo. Acho que, aos poucos, estou chegando a entender os motivos de sua morte prematura. Obrigado, Joe, por seu contínuo interesse em Trevor e aceite minhas desculpas pela demora em escrever.” Para mim, foi uma bomba!

Dois meses depois, no mês de agosto, recebi mais uma carta, desta vez da tia, contando com detalhes os motivos que levaram o Trevor à morte. Eis alguns trechos: “Trevor faleceu no sábado entre as 6hrs e 10hrs da noite do dia 3 de maio deste ano. Apesar de a mãe dele, Pat, ter tentado manter em segredo as causas da morte, a verdade sempre aparece. Na realidade, a causa da morte de Trevor foi por suicídio acidental, isto é, ele tomou uma elevada dose de comprimidos de dormir, obtidos através do médico local. Achamos que ele queria chamar a atenção daqueles que viviam em torno dele, fazendo-se muito doente, mas algo não saiu de acordo com o planejado e a dose excessiva causou ataque do coração enquanto dormia. Acredito que Deus tenha concedido ao Trevor aquela paz que ele não conseguia encontrar em sua família aqui; agora a encontrou com o Senhor no paraíso, onde, estou certa, que ele nos precedeu. Trevor sempre foi uma pessoa amável e sem maldade, sempre viveu plenamente como jovem daquela idade. Talvez Deus tenha planejado assim; afinal de contas, eu não consigo imaginar o paraíso como um local lúgubre para aposentados idosos, mas deve ter também a alegria da juventude. Nós estamos muito tristes pela perda de Trevor! Pode ser que alguma vez falhamos em nosso relacionamento com ele, mas, como o amávamos muito, sinto que nosso amor não era suficiente para compensar o tipo de amor paternal que precisava de seus pais e, infelizmente, nem eu fui capaz de lhe oferecer. Agora, ele foi para Deus, onde deve estar sendo inundado com todo amor paternal que seu coração ansiava tanto!”

Pelo descrito acima, Trevor desejava se sentir amado, mas devido a problemas familiares, sentia-se deixado de lado. A última esperança que ele tinha era a minha amizade para lhe dar atenção. Infelizmente, naquela época não tínhamos meios de comunicação mais velozes… somente cartas pelo correio que nem sempre funcionava a contento. Pena que minha carta a Trevor, que demonstrava-lhe que eu lhe queria bem e que o amava como se fosse meu sobrinho, que pudesse consolá-lo em suas angústias, não lhe chegou a tempo de evitar sua morte prematura!

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Monsenhor José Agius Monsenhor

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